Elza Soares, a mulher do fim do mundo, reina na folia carioca
 

O CARNAVAL DO PLANETA FOME

Texto e fotos de Valéria del Cueto

Se “a esperança brilha mais na escuridão”, como diz o samba enredo desse ano da campeã de 2019, a Estação Primeira de Mangueira, a estrela da Mocidade Independente, iluminada pela luz da homenageada na verde e branco da Vila Vintém, Elza Soares, a mulher do fim do mundo, projetará as visões do Planeta Fome na Sapucaí em 2020.

Porque o povo do samba anda com fome. Suas premências básicas estão presentes nos enredos das 13 escolas do Grupo Especial do Carnaval Carioca.

A primeira e mais ampla necessidade é de reconhecimento e respeito. Há quatro anos a vida do sambista vem sendo um purgatório com a ativa e operante participação do poder público carioca. Deixando de lado o incentivo à maior fonte de arrecadação turística anual, a Prefeitura do Rio secou a fonte de recursos municipais para a festa que traz bilhões à cidade a cada temporada.

E não é só isso, ao usar o dinheiro público para alardear sua “política cultural” em comerciais institucionais, ela afasta investidores e possíveis patrocinadores.

Como a 3ª lei de Newton, aquela que diz que “a toda ação corresponde uma reação com a mesma força em sentido contrário” ainda está em plena validade nesses tempos de terra plana, o povo do samba fez do limão uma limonada partindo para enredos autorais.

Também é fato que nessa seca as escolas da região metropolitana, situadas em outros municípios, ainda têm uma carta na manga. Suas próprias prefeituras que não estão na mesma cruzada que o alcaide do Rio. Então, a Viradouro de Niterói, a Beija-flor de Nilópolis e a Grande Rio de Duque de Caxias, não estão tão no sufoco. O que não leva seus enredos a desafinarem ou deixarem de estar em sintonia com o Planeta Fome…

Na capa da rainha de bateria Evelyn Bastos, nomes de vítimas da violência nas comunidades do Rio

DOMINGO

A veterana Rosa Magalhães é a responsável pelo enredo com o título mais sintético da temporada. Com “Pedra” a escola de samba vencedora do Acesso retorna ao grupo de elite do carnaval carioca. Partindo da pedra fundamental do maior espetáculo da terra, a própria Estácio de Sá, o assunto mira na primeira fome da noite: a da preservação do meio ambiente.

O garimpo traz o ouro, a cobiça dos mortais / Peneirar, peneirar / Devastando a natureza no Pará dos carajás / Da lua, de Jorge, eu vejo o Planeta Azul chorar

Baianas cuidam do axé da Sapucaí, com a colaboração de São Pedro. Veio água lá de cima na lavagem da pista…

“Viradouro de alma lavada” apresenta Maria do Xindó, lavadeira e uma das matriarcas do grupo musical As Ganhadeiras de Itapuã. O intérprete Zé Paulo Sierra cantará as mulheres e sua fome de voz e liberdade.

A alforria se conquista com o ganho / E o balaio é do tamanho do suor do seu amor

Leandro Vieira tenta o bi campeonato da Mangueira com “A Verdade vos fará livre”. Imaginando como seria a volta de Jesus nos dias de hoje, a fome de amor já foi crucificada antes mesmo do desfile em polêmicas sobre a proposta verde e rosa e ameaças como as vividas há mais de 2 mil anos atrás.

Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão…

É no alto do Paraíso do Tuiuti que acontece um encontro inusitado. Com “O Santo e o Rei, encantarias de Sebastião”, o carnavalesco João Vitor Araújo, fala da fome de dias melhores para o Rio.

A cidade das mazelas / Pede ao Santo proteção / Grito o teu nome no cruzeiro / Oh, Padroeiro! Toda a minha devoção!

A Grande Rio cantará João da Goméia, “Tata Londirá – o canto do caboclo no quilombo de Caxias”. A fome que vem de Duque de Caxias é de mais tolerância religiosa.

Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé / Eu respeito seu amém / Você respeita o meu axé

Laíla e sua comissão de carnaval composta por Fran-Sérgio e Cahê Rodrigues estão dando um sacode na União da Ilha. “Nas encruzilhadas da vida; entre becos e vielas, a sorte está lançada. Salve-se quem puder” A fome explícita é a de oportunidades iguais.

Eu sei o seu discurso oportunista / É a ganância, hipocrisia / O seu abraço é minha dor, seu doutor
Eu sei que todo mal que vem do homem / Traz a miséria e causa fome / Será justiça de quem esperou 

A Portela encerra a primeira e mais longa noite dos desfiles falando da Guanabara original em “Guajupiá, terra sem males”. Renato e Márcia Lage desenvolvem o tema que expressa a fome de justiça para os “índios” brasileiros.

Borduna, tacape e ajaré / Índio pede paz mas é de guerra / Nossa aldeia é sem partido ou facção / Não tem “bispo”, nem se curva a “capitão”

São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro sempre presente inspirando e protegendo a festa.

SEGUNDA

“O Conto do Vigário”, de Jorge Silveira, enredo da São Clemente, apresenta ao carnaval um novo compositor, o humorista Marcelo Adnet na parceria vencedora. Entre outras demandas, o destaque é a fome da verdade, um protesto contra fake news e seus nefastos resultados tão bem conhecidos por aqui.

Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu! / E o País inteiro assim sambou / “Caiu na fake news!”

Na Vila Isabel, Edson Pereira traz “Gigante pela própria natureza: Jaçanã e um índio chamado Brasil”. A fome é da nossa identidade cultural, tão plural e miscigenada.

Índio filho da mata / Dono do ouro e da prata / Que a terra-mãe produziu / Sou eu! / Mais um Silva pau de arara / Sou barro marajoara / Me chamo Brasil

O palhaço Benjamim de Oliveira será “O rei negro do picadeiro” do Salgueiro. Alex de Souza fala sobre a fome de igualdade racial.

Arma o circo, chama o povo, Salgueiro! / Aqui o negro não sai de cartaz / Se entregar, jamais!

De Paulo Barros, novamente nos braços da Unidos da Tijuca, “Onde moram os sonhos”, aborda a arquitetura. As características do morro do Borel destacarão a fome de moradia digna.

Eu sou favela!!! / O samba no compasso é mutirão de amor / Dignidade não é luxo, nem favor

A penúltima escola de samba a desfilar é a Mocidade Independente de Padre Miguel. Ela cantará uma ilustre moradora da Vila Vintém, “Elza Deusa Soares”, aqui a letra do samba fala por si só.

Brasil, enfrenta o mal que te consome / Que os filhos do planeta fome / Não percam a esperança em seu cantar

Quem encerra os desfiles do Grupo Especial é Beija-flor. Com “Se essa rua fosse minha” a comissão de carnaval composta, entre outros, pelos carnavalescos Cid Carvalho e Alexandre Louzada vem de Nilópolis daquele jeito. Juntando a fome de liberdade religiosa a vontade insaciável chegar a mais um título…

São tantas promessas de um peregrino / É crer no milagre, sagrados valores /  Em tantos altares, em tantos andores / A vela que acende, a dor que se apaga / A mão que afaga se torna corrente

Ordem dos desfiles:

Domingo: Estácio de Sá, Viradouro, Mangueira, Paraíso do Tuiuti, Grande Rio, União da Ilha, Portela

Segunda: São Clemente, Vila Isabel, Salgueiro, Unidos da Tijuca, Mocidade, Beija-Flor

Diagramação Luiz Márcio Genio

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